:: Comunicação e Saúde, a capacitação necessária

Wilson da Costa Bueno*

     Embora a cobertura de saúde pela mídia brasileira seja generosa (o que não quer dizer necessariamente qualificada) e sejam elevados os investimentos em propaganda e marketing da poderosa indústria da saúde, a capacitação de profissionais nesta área (jornalistas, comunicadores, profissionais da saúde em geral) continua sendo precária em nosso País.
     Não se pode negar, pelos motivos expostos (equívocos na divulgação, convergência de interesses privados etc) ou mesmo pela importância da saúde para os indivíduos e para a sociedade de maneira geral, que a capacitação não deva ser prioridade. Mas nem tudo acontece, infelizmente, como seria de se esperar e por isso há uma lacuna imensa a ser preenchida na Academia e no mercado profissional.
     O número de disciplinas (obrigatórias ou eletivas) que dedicam conteúdos e práticas para a atividade básica de comunicação para a saúde é reduzido, quase nulo no Brasil, seja nos cursos de comunicação, seja nos de saúde (Medicina, Odontologia, Psicologia, Nutrição, Fisioterapia, Enfermagem etc). Não encontramos também, com facilidade, cursos a distância, cursos de especialização ou mesmo eventos que estejam interessados nesta área ou contribuindo para esta capacitação. Podemos saudar, pelo menos, o Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP que tem uma linha de pesquisa com com este foco ou ainda a Conferência Brasileira de Comunicação e Saúde, realizada anualmente pela Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação para o Desenvolvimento Regional. Louvamos ainda iniciativas de instituições de prestígio, como a Fiocruz (referência para todos nós), mas, convenhamos é pouco, muito pouco, para uma demanda e uma necessidade indiscutíveis.
     Na prática, o problema reside mesmo no fato de as universidades e o mercado , apesar do discurso em contrário, não dedicarem a atenção devida à formação de comunicadores especializados e essa fallha não se restringe à saúde, mas pode ser observada, por exemplo, em áreas também consideradas estratégicas para o País, como o agronegócio.
     Isso significa que devemos iniciar estudos, levantamentos e debates visando preencher esta lacuna de modo a, num futuro próximo, qualificarmos melhor a cobertura da imprensa, aumentarmos os espaços de divulgação para a saúde e, sobretudo, criarmos uma cultura e uma competência em comunicação na área. Elas existem em alguns nichos (a Fiocruz, a Unifesp, na própria UMESP ), mas não estão sendo, obrigatoriamente, compartilhadas, seguidas por outras universidades e entidades e, particularmente, o mercado profissional anda à margem destas demanda e necessidade reais.
     O ideal seria que esta formação fosse concebida a partir de parcerias entre entidades profissionais, sindicatos da área, sociedades científicas, universidades e mesmo veículos de comunicação e empresas, de tal modo que refletisse as expectativas de produtores , disseminadores de conteúdos e especialmente da audiência (leitores, telespectadores, radiouvintes, internautas), ou seja o público leigo. Há, no momento, iniciativa do Governo Federal (recursos para projetos) no sentido de estimular este processo de capacitação, mas ela tem se limitado às instituições públicas e muitas delas, na verdade, encontram obstáculos, em função da burocracia oficial e das suas dificuldades estruturais , para viabilizá-las de forma ágil e adequada.
     Há um cuidado, porém, que deve se tomado ao se cogitar destas iniciativas. Não se pode ficar à mercê dos interesses da indústria da saúde e é preciso tomar cautela com a aproximação de determinadas empresas ou organizações. Muitos laboratórios farmacêuticos podem ter estar até dispostos a investir nessa capacitação, mas boa parte deles não o faria sem uma contrapartida ou, então, a perspectiva deles não interessa à sociedade. Eles insistem em confundir comunicação com marketing, este entendido no pior sentido, porque voltado para a manipulação da opinião pública (como costuma ser a maioria das ações de propaganda e marketing da indústria farmacêutica). Há informações de que alguns dos laboratórios já andam inclusive sondando a possibilidade de estabelecer parcerias com universidades, certamente porque isso lhes agregaria a credibilidade de que não desfrutam junto à comunidade jornalística. Se é o laboratório (sobretudo alguns deles) a patrocinar abertamente esta capacitação, os jornalistas e profissionais tenderão a boicotá-la. A indústria farmacêutica sabe disso e já age desta forma em outras situações, quando esconde a sua “cara” em eventos, workshops etc, tentando burlar a vigilância de médicos e jornalistas. Transparência não é, necessariamente, a maior virtude de boa parte de seus representantes.
     A capacitação em comunicação para a saúde deve pressupor o refinamento dos conceitos (por exemplo fugir da armadilha de confundir saúde com ausência de doença) e extrapolar o ensino de técnicas para produção de notícia especializada. Será preciso incorporar um debate amplo sobre os interesses privados na saúde, resgatar a história da Saúde, relacionar saúde e cultura, saúde e economia, saúde e meio ambiente, saúde e cidadania.
     Esta formação contribuiria decisivamente para mudar o cenário que aí está, contaminado pela ação agressiva de agências de comunicação e assessorias de imprensa a serviço desses grandes interesses comerciais, com a cumplicidade de um jornalismo não investigativo e refém das coletivas e dos favores oferecidos pela indústria da saúde (que assediam, escandalosamente também – e principalmente - os profissionais da saúde).
     A capacitação em comunicação e saúde deve privilegiar a consciência crítica. Dependendo de quem a formula e a propõe, a iniciativa acabaria, na prática, ao invés de representar uma saída, por se constituir em um desserviço para a sociedade. Deixar que a indústria da saúde cuide disso, sozinha, sem a vigilância da universidade e do mercado profissional, seria o mesmo que colocar a raposa para tomar conta do galinheiro. Em geral, ela tem sido competente (e muito) para vender medicamentos e terapias milagrosas. Faz sentido: é assim que ela obtêm seus lucros, em muitos casos indecentes. Não está no DNA dela abrir os olhos de quem pode, na verdade, vir a contrariar os seus interesses.
     Há exceções, felizmente, no conjunto formidável de empresas que atuam na área da saúde (podemos admitir que existam mesmo laboratórios em que se pode confiar), mas elas apenas confirmam a regra. Precisamos de parceiros responsáveis , de professores e profissionais críticos para que a comunicação para a saúde seja competente, cidadã e democrática.
     Se isso acontecesse, seria bom para a mídia, para os profissionais da saúde realmente comprometidos com o interesse público e para a sociedade de maneira geral. Alguém que tem esse perfil saudável se habilita? Que não seja a chamada Big Pharma. Ela não é mesmo bem-vinda.

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*Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP e professor de Jornalismo da ECA/USP. Editor do Comunicação e Saúde on line e da revista digital Comunicação & Saúde. Diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa.

 

 
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