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Propaganda
de Medicamentos no Brasil - um discurso pra lá de persuasivo!
Paula Renata Camargo de Jesus*
Há
tempos alguns questionamentos fazem parte da vida dos brasileiros,
sobretudo daqueles que se preocupam com a saúde desse povo.
O
medicamento deve ser considerado um produto industrial submetido
às lógicas comerciais de modo que a demanda social
criada induza o seu consumo? Medicamento é mercadoria comum?
Doente pode ser visto como consumidor qualquer? Farmácia
é supermercado? "Vale tudo" na propaganda de
medicamentos para se vender mais?
A
resposta mais lógica a todos esses questionamentos seria:
NÃO. Mas não é bem assim que acontece no
Brasil.
A
falta de ética faz com que a população brasileira
seja grande vítima da saúde.
A
indústria farmacêutica, que investe milhões
em pesquisas buscando a cura das pessoas, é a mesma que
não mede esforços ao recorrer a todo tipo de marketing
e propaganda para esvaziar as prateleiras das farmácias.
Em
quem confiar? Se até mesmo grande parte dos pesquisadores
e médicos questiona-se, com os altos investimentos em centros
de pesquisa, patrocinado pela indústria farmacêutica?
Como
se não bastasse o poder da indústria farmacêutica
em altos investimentos de marketing, ela encontra como parceira
a mídia de massa, que legitima algumas informações
e divulga muitas vezes, sem responsabilidade, medicamentos a leigos,
que não deveriam receber determinada informação
sem orientação do profissional da saúde.
Mas
enquanto existe preocupação na questão da
venda dos medicamentos para curar determinada doença, alguns
especialistas têm se preocupado com a questão da
venda desenfreada de medicamentos causada pelo próprio
uso desnecessário de medicamentos, ou seja, de substâncias
utilizadas em alguns medicamentos que geram dependência,
até mesmo no caso das doenças de fundo psicológico,
que em algumas pesquisas comprovou a eficácia do placebo
(a pílula constituída de farinha). A ausência
do médico, ou o pouco tempo de dedicação
do mesmo ao paciente pode gerar um estímulo ao consumo
de determinado medicamento. Dez minutos de consulta e diversas
prescrições médicas, podem acelerar o processo
de automedicação.
O
marketing da dor não deixa dúvidas quanto aos altos
investimentos em propaganda. O discurso persuasivo da propaganda
de medicamentos está presente na mídia de massa
através de frases, expressões, enfim palavras que
produzem efeitos fantásticos, principalmente quando repetidos
em: rádios, emissoras de televisão, revistas, outdoors
e até no material de ponto de venda das farmácias
e drogarias; nas revistas semanais, destaca nas capas a chegada
de novas drogas que prometem curas milagrosas; no rádio,
patrocinando os locutores líderes de audiência e
programas jornalísticos de muita credibilidade, nos outdoors
anunciando anti-stress, vitaminas, xaropes e fortificantes; na
televisão, com os testemunhais de artistas famosos interpretando
papel persuasivo e médicos utilizando sua própria
imagem para propagar determinado medicamento.
As
estratégias mercadológicas utilizadas pela indústria
vão desde visitas de propagandistas aos consultórios,
farmácias, drogarias e hospitais, à distribuição
de brindes e premiação aos envolvidos diretamente
na venda dos medicamentos: farmacêuticos e balconistas.
As
promessas de cura se multiplicam e a sensação de
reagir a elas é de total impotência.
Mas
vale destacar uma herança histórica e cultural.
Ao pesquisar a história da propaganda no Brasil, nota-se
que os primeiros anunciantes potencialmente conhecidos, foram
os medicamentos. Dos cartazes em bondes, aos primeiros anúncios
de revistas, a promessa de cura sempre acompanhou a propaganda
de medicamentos. E não há dúvida que através
da poesia, os jogos de palavras deram vida persuasiva aos primeiros
anúncios da propaganda brasileira, como o de Bastos Tigre
"Veja ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor
tem ao seu lado. E, no entanto acredite, quase morreu de bronquite,
salvou-o o Rhum Creosotado." (Temporão, 1986, p 36).
Os
"reclames" como eram chamados os anúncios, eram
aparentemente ingênuos, pois não havia um especialista
para escrever a respeito de medicamentos. Ora os médicos
davam seus depoimentos, ora os poetas eram contratados para escrever,
enquanto artistas plásticos e pintores ilustravam os anúncios,
quase sempre com imagens de sofrimentos, com a promessa de cura
pelo medicamento.
"Larga-me...deixa-me
gritar!..." era o discurso do Xarope São João,
veiculado na Revista da Semana, no Rio de Janeiro, em 1900. Esse
xarope utilizava a imagem de um homem, como se estivesse amordaçado,
significando a ameaça da tosse, bronquite, rouquidão.
O xarope era o grande salvador. O texto ainda dizia frases como:
"...é a única garantia de sua saúde....é
o remédio científico, apresentado sob a forma de
um saboroso licor. O único que não ataca o estômago,
nem os rins..."
Mas
naquela época, certamente um mercado efervescente como
o da indústria farmacêutica, conseqüentemente
o publicitário, não deixaria de ver com outros olhos
a poesia que tanto contribuiu para as práticas comerciais
de uma época. O curioso é perceber que ao resgatar
o passado pode-se entender melhor o presente, analisando os discursos
persuasivos e polissêmicos existentes nos anúncios
de medicamentos no Brasil, então, desenvolvidos por artistas
plásticos, poetas e escritores. Em uma época sem
lei, normas ou fiscalização de controle a respeito
do conteúdo das mensagens da propaganda, muito menos dos
discursos nelas empregado.
A
indústria farmacêutica, que viu nascer o século
passado, acumulou muito da prática artesanal e empírica.
Inicialmente conhecida como botica (nome dado às farmácias
administradas por famílias) a indústria farmacêutica
passou os trinta primeiros anos de existência produzindo
remédios através de insumos extratos vegetais e
produtos de origem animal (Temporão, 1986, p 26). Sua evolução,
assim como a da propaganda brasileira, aconteceu gradativamente.
Hoje, falar de propaganda sem falar dos primeiros anunciantes,
ou seja, medicamentos (os populares remédios) é
praticamente impossível.
O
destaque para os anúncios com uma melhor elaboração,
se deu na chegada das revistas: Revista da Semana, O Malho, Cri-Cri,
A Careta, Fon-Fon, a Lua.
Aliás,
A Lua, uma revista de 1910, de São Paulo (Temporão,
1986, p 39) teve como anunciante, em quase todas as edições,
o Xarope Bromil, famoso pelo slogan: "cura a tosse em 24
horas" (pouco provável em tempos de controle e fiscalização
da linguagem na propaganda de medicamentos, em tempos atuais).
Naquele
tempo, os anúncios de medicamentos elaborados por Olavo
Bilac, Emílio Menezes, Hermes Fontes, Basílio Viana
e Bastos Tigre, que ousou parodiar Os Lusíadas para o medicamento
Dermol: "Toda pessoa previdente e cauta que a vida pauta
com muita atenção, seja do povo ou da nobreza o
Escol, usa Dermol e sempre o tem à mão". Eram
escritores e poetas que seguiram anos e anos, junto aos artistas
plásticos, desenhistas e pintores brasileiros, desenvolvendo
a criação da propaganda dos medicamentos.
Temporão
cita em seu livro "Propaganda de Medicamentos e o Mito da
Saúde" que os componentes: escritos e icônicos,
respectivamente a marca e slogans ou textos, e os desenhos, marcaram
época em quase todas as publicações da época.
"O nosso discurso verbal está permeado de imagens,
ou como Peirce diria, de iconicidade" (Santaella e Nöth,
1998, p 14).
Durante
a 1ª Grande Guerra, a linguagem dos anúncios, principalmente
os de medicamentos, parecia nitidamente ligada ao período
difícil que o mundo encontrava-se. Santogen "dá
auxílio e levanta exaustos os que caem por falta de energia
e vitalidade", Alcatrão-Guyet "a polícia
dos pulmões", Rhodine "em nada se parece com
outros comprimidos", Urudonal "lava o sangue, amacia
as artérias e evita a obesidade" e Xarope de Grindélia
"pedir e exigir sempre contra tosse" (Ramos e Marcondes,
1995, pp 28-29).
A
linguagem sempre acompanhou as fases históricas, não
seria diferente com a linguagem publicitária, que tornou
a propaganda de medicamentos popular.
"O antes e o depois", estratégia utilizada até
os tempos atuais pela propaganda, fez parte do anúncio
do Xarope Peitoral de Alcatrão, estampando duas fotos,
com o bom resultado do produto, em 1895: "Eu era assim, cheguei
a ficar assim! Sofria horrivelmente dos pulmões, mas graças
ao milagroso xarope peitoral de alcatrão e jatahy, consegui
ficar curado e bonito" (Temporão, 1986, p 42).
O
grande anunciante do setor chegaria em 1917, a Bayer. Com campanhas
regulares, a empresa alemã, investiu alto em publicidade.
A Bayer destacava-se pela originalidade dos textos e pela qualidade
gráfica dos anúncios. Era característica
sua associar seus produtos às palavras como: original,
puro, científico para contrapor os produtos nacionais.
Eram muitos os produtos da Bayer: Adalina "a fonte da juventude
eterna", Bayaspirina "silêncio", Instantina
"num instante vae-se o mal" e outros, sempre utilizando
a marca e reforçando-a com um slogan. Aliás, o centenário
"Se é Bayer, é bom", de Bastos Tigre,
eternizou a marca. Dores em geral, principalmente cefaléias,
ganharam destaque nos anúncios, com medicamentos como Cafiaspirina:
"Se alguma dor o domina, tome Cafiaspirina".
Amadores
ou profissionais, ingênuos ou aparentemente ingênuos,
os anúncios não eram muito diferentes de seus autores.
Alguns ganharam dinheiro, outros não. Monteiro Lobato é
um exemplo de escritor que se tornou autor de anúncios
publicitários, transformando o fortificante Biotônico
Fontoura em um marco na história da propaganda de medicamentos
brasileira.
Verdadeira
obra prima da propaganda de medicamentos brasileira, Jeca Tatuzinho
foi criado por Monteiro Lobato para Biotônico Fontoura,
cujo slogan era "o mais completo fortificante". Tatuzinho
era um personagem fraco, amarelo, que ao tomar o fortificante
ficava saudável. O sucesso foi tão grande, que Lobato
passou a divulgar as virtudes da Ankilostomina e do Biotônico
Fontoura, o que certa vez impressionou Rui Barbosa, pela simplicidade
e popularidade, tanto do personagem, como da maneira que era querido
por todos (Ramos e Marcondes, 1995, p 35).
Monteiro
Lobato chegou a abrir mão de Jeca Tatuzinho criado para
seu amigo Cândido Fontoura, como gratidão pelo fortificante
ter feito bem à saúde do escritor.
O
personagem ficou famoso e a marca não menos conhecida e
consumida durante gerações. O que Monteiro Lobato
fez pela propaganda de medicamentos, principalmente para o Laboratório
Fontoura, é um verdadeiro patrimônio histórico.
Biotônico Fontoura ainda existe e faz propaganda.
Não
que essa herança histórica e cultural justifique
tais procedimentos utilizados pela indústria farmacêutica
atualmente, mas pode ser utilizada como referência para
se compreender o discurso na propaganda de medicamentos.
Mesmo
hoje, com fiscalização, com o controle da ANVISA,
ainda há de se preocupar com a linguagem persuasiva utilizada
na propaganda de medicamentos de venda livre. "Tomou Doril,
a dor sumiu" é uma frase de efeito, portanto um slogan
que envolve uma série de implicações, não
apenas éticas, já que se trata de medicamento e
não de mercadoria comum, mas de um discurso que envolve
promessa.
As
palavras, quando utilizadas na propaganda de medicamentos, deveriam
assumir um compromisso com o consumidor, provável doente,
fragilizado! O fato de ser utilizada como instrumento persuasivo
não anula a responsabilidade com o social, para isso existem
leis, que não são cumpridas, seja por falta de uma
"severa" fiscalização ou por questões
de ordem política.
O
falar a verdade não compromete o discurso da propaganda
legal. O uso adequado das palavras na propaganda de medicamentos
pode dar credibilidade à indústria farmacêutica.
Atualmente a percepção que se tem é que o
discurso da propaganda de medicamentos é pra lá
de persuasivo, chega a ser irresponsável e mesquinho.
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Paula Renata Camargo de Jesus
Doutoranda em Comunicação e Semiótica
pela PUC/SP e Pesquisadora em Comunicação e Saúde.
Professora das universidades: UNISANTA, de Santos e IMES, de São
Caetano do Sul/ Brasil.
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